Depois de surgirem, mais uma vez, novos números que indicam que os espectadores nas salas de cinema, em Portugal, se reduzem de forma alarmante, que as operadoras de televisão se recusam a cumprir a negociada e implementada lei do cinema, depois de meses do fecho e reabertura do segundo maior exibidor de cinema no nosso território, talvez pouco precisássemos ainda para perceber que o sector do cinema, em Portugal, vive profundamente dividido, disfuncional, e inoperante. Cinema e televisão continuam a viver de costas voltadas (já nem perguntamos que cinema português passa na televisão de sinal aberto, perguntamos - que cinema?, simplesmente), o público continua perdido no mapa esquizofrénico de distribuição (dirigindo-se a salas sem qualquer espécie de identidade ou de programação, uma capacidade que já foi retirada pelo próprio Estado à sua sala de cinema - a Cinemateca Portuguesa -, sim, uma sala que é sua e que assim o é para cumprir uma função), e, sobretudo, completamente alheado de uma ideia simples, básica, humana, enterrado num preconceito que ainda existe contra quem faz cinema, por que o faz, e que filmes devem ser feitos.
A culpa, no entanto, não é do público português: já são longos anos em que, da ideia de desenvolvimento para Portugal, sempre se alheou a da formação do nosso olhar para entendermos o mundo, gerirmos a nossa vida, vivermos na nossa comunidade, ou, simplesmente, enriquecer e abrir as nossas mentes, porque esse é dos sinais mais reconhecidos de uma sociedade rica, recusando a sobranceria de quem quer fazer da cultura algo de inacessível, especial, ou reservado aos seus, ou de quem a rejeita por ver aí uma ameaça da terrível minoria do intelecto. Toda esta contradição teve um ponto explicitamente alto quando um ex-Secretário de Estado da Cultura chegou a defender, na mesma intervenção, que uma das prioridades do seu mandato era a aposta na formação (mandato que durou pouco mais de um ano), mas que não acreditava na expressão "políticas culturais". Nos vários campos políticos portugueses, os complexos em relação à cultura são de tal ordem que se chega a este ponto: a recusa de que a política cultural é algo de natural e não ideológico, ao ponto de querer "banir" as suas próprias palavras da linguagem.
Neste momento, acontece um mesmo evento de "formação" no nosso país: a mostra de vários filmes portugueses em dezenas de localidades, pelo nosso território, que nunca assistiram à projecção de um filme português nos últimos nove anos. Se bem que esta possa ser vista como um acção louvável - levar cinema a quem não o tem -, não será, precisamente, por acções destas - isoladas no tempo, respondendo ao vazio com um evento efémero e não com uma presença regular e constante junto da sua população -, que o público português irá acordar para o cinema do seu país. Mas um olhar para a sua programação revela um dado ainda mais alarmante: a esmagadora maioria dos filmes projectados correspondem à chamada facção (triste estado do cinema, aquele que está dividido por facções) do "cinema comercial", ou seja, do cinema que é feito para o "grande público" (sim, aquele que já não vai às salas e deixa o segundo maior exibidor cair na falência).
A crítica, aqui, não se prende pela suposta qualidade (ou não) dos filmes - se bem que, se estivéssemos a falar de formação do olhar, de um trabalho feito sobre as pessoas para estas desenvolverem a sua forma de olhar para o mundo (sim, é possível fazer isto no seu mais puro respeito e vontade, sem arrogância e prepotência), teria necessariamente de existir uma ideia mínima de programação por quem trabalha sobre isso (sim, é um trabalho, e sim, dirige-se a todos - todos). A crítica está em, precisamente, essa política do gosto vir de parte do próprio Estado, ao incluir filmes que alguns desses espectadores, mesmo nos cantos mais escondidos do nosso país, já terão visto passar nas raras vezes que a nossa televisão mostra filmes portugueses, recusando a diversidade da sua mostra, ou mesmo algumas das obras que maior correspondência terão recebido a nível internacional - aquelas que são referidas, fora dessas aldeias e mesmo de Portugal, quando se fala de cinema português.
Pegamos noutro evento, também a acontecer neste momento - e que também deseja dar a conhecer o cinema português a quem nunca o viu -, para percebermos, de forma ainda mais clara, a diferença de visões que existe entre como o cinema português é visto dentro do nosso território pelas entidades que o gerem, e fora do nosso território por quem procura vê-lo (em festivais, em mostras, no circuito comercial). Na Primeira Semana do Cinema Português, em Buenos Aires, a sua programação é radicalmente oposta, ao ponto de acharmos que se tratam de dois países diferentes. Aqui, a crítica é justa: tratam-se de filmes que abrem o nosso olhar para outros mundos, filmes recompensados e reconhecidos, tanto pelo público como pela crítica no mundo inteiro, como olhares originais sobre o mundo feitos a partir do nosso país (e quando se diz originais, não se diz exclusivos e fechados, pelo contrário). Na Primeira Semana do Cinema Português, os espectadores argentinos terão a oportunidade de ver como Portugal olha para o mundo - e por aí, incluirem-se nessa visão para enriquecer os seus sentidos e desafiarem aquilo que conheciam, através de uma formação do olhar que não se deseja identitária, mas humana (por cingir sobre os sentidos).
Em Portugal, enquanto se continuar a recusar a ideia de que o Estado tem de intervir na formação do olhar - e ao fazer isso, aplicar a sua política no respeito mais alargado, tolerante, e menos ideológico possível sobre o tecido artístico e industrial português (e ao se dizer o Estado, que a sua acção passa por chamar quem trabalha nessas áreas e dedica o seu próprio olhar a essa formação e investigação), as várias facções continuarão a ser facções, as leis continuarão a ser incumpridas e rasgadas, o divórcio entre agentes fará a regra, e o público português continuará a passar ao lado do seu desenvolvimento.