Acontece demasiadas vezes, mas dada a importância que a imaginação prende na minha cabeça, já aprendi a aceitar os enganos e esquecimentos que faço com alguns compromissos da vida real.
Saía de casa, portanto, com horários feitos para o visionamento de um filme pela manhã (a hora em que os espectadores ainda dormem e os críticos devem trabalhar), quando me deparo com a sala de cinema fechada e de grades postas. No tempo de espera e de esperança que faço para ver se haverá, ou não, a dita projecção do filme, olho para os transeuntes que aí passam e noto não tanto na curiosidade com que interrompem os seus passos para ler anúncios e papéis de outros filmes e ciclos, mas antes na surpresa de verem uma sala de cinema a viver no meio de uma rua - sim, no meio da vida de todos os que ali vivem e que ali passam. E se se fala todos os dias da crise económica e financeira, aquela que mais salta à vista é aquela que é sempre esquecida: a crise da imaginação, ausente destas mesmas ruas que vivem hoje sem cinema. "A imaginação ao poder": se, no meu caso, ela revela-se por vezes totalitária, não deixa de ser a sua ausência que nos traz a maior das pobrezas: a do espírito, que precisa das suas projecções para viver. De filmes, de paixões, dos sentimentos, da curiosidade em descobrir aquilo que ainda está escondido dentro de nós. Os cinemas não são cavernas, são portas abertas para esse espírito, espelhos brilhantes que nos refletem aquilo para o qual nunca conseguiremos dar palavras na vida.
Aceito então, de novo, esse mesmo "poder" e deixo-me divagar nos noventa minutos vagos que encontrei na minha nova manhã, percorrendo um caminho, nessas ruas, tal como um espectador que aceita as imagens de um filme em que já se encontra mergulhado. E sigo o instinto que me leva também tantas vezes (e não existem demasiadas) para a livraria francesa, em busca de uma história que ainda não abri e que talvez direccione melhor os meus passos perdidos. Talvez pela solidão, pego num livro que já aí se encontrava há muitos anos na mesma prateleira: Le journal d'Alphonse - Alphonse, filho de Antoine (Doinel). O que antes me fizera afastar dele é, hoje, aquilo que me faz abri-lo: retiro-o desse esquecimento e leio as suas primeiras páginas, sem perceber se esse "journal", ou diário, é algo de verdadeiro ou falso. E aí descubro um projecto secreto nunca revelado em qualquer outro livro que lera de Truffaut: já doente, este filmara alguns ensaios daquele que seria o quinto tomo da saga Doinel - desta vez, pelo filho Alphonse, e não por Antoine. Élisabeth Butterfly (um nome que poderia ser retirado do tom mais brincalhão do cinema de Truffaut) descobrira esse projecto em pesquisas feitas na biblioteca da Cinemateca Francesa, publicando o que ficou desse guião interrompido, as suas notas, as suas intenções. E pelo meio, a pertinente observação e pontes com todo o cinema de Truffaut, as notas que o realizador retirara do Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes, e um olhar crítico resumido mas certeiro sobre o movimento do seu cinema. "Le domaine privilégié de Truffaut n'est ni la sociologie ni la réflexion sur l'écriture, mais le monde des sentiments". Um mundo em que os sentimentos, de facto, tomam o poder, e fazem com que o jovem Alphonse viva o seu primeiro amor com o maior dos dramatismos - aquele amor que toma conta de todos os solitários e que a ele se abandonam, nas suas horas da inocência, para abrir feridas e viverem a vida como se nela vivessem os seus últimos momentos.
Diz Alphonse: "J'ai porté à Marion 61 lys blancs destinés à un mariage en banlieue. J'ai été viré, Marion est tombée malade parce qu'elle est allergique aux fleurs, alors, j'ai voulu mourir. 'Certains jours comme aujourd'hui, la vie a si mauvais goût qu'on voudrait pouvoir la cracher'." Alphonse cita André Gide para poder viver a paixão pela paixão, sem a vida. Por outras palavras, a sua destruição - a morte - ainda em terna idade. "À l'âge où l'on attrape des rougeoles et des scarlatines, moi j'avais choisi le mal de vivre. Alors, comme on crève en douce le chat du voisin, je m'étais ouvert les veines, sans drame, pour en finir."
Mas Truffaut, sabendo que o cinema e a vida também fazem mal, cita antes: "On est le père et la mère de ses oeuvres", como um adulto que sabe que os sentimentos são também nossos filhos, logo, movimentos livres aos quais tentamos dar a melhor direcção possível. E por aí, o realizador põe a mãe Christine a falar com Alphonse, num daqueles momentos do seu cinema em que as personagens falam tanto para as pessoas que amam como para quem os vê na sala: "Tu sais, Alphonse, contrairement à ce que prétend ton père, la vie n'est pas un roman. Chaque personne est un couple qui ne cesse de se disputer. On casse des vases, on brise de la vaisselle, on se dit des insanités, on s'exècre, on se méprise, mais on finit toujours par faire la paix. Alors, tu comprends, se couper les veines, ce n'est pas la règle du jeu. C'est une chance que Luca t'aie trouvé. La vie est dure, Alphonse, mais elle est belle, puisqu'on y tient tellement." Raccord para L'argent de poche (1976): "La vie est dure, mais elle est belle, puisqu'on y tient tellement. Il suffit qu'on soit obligé de rester au lit pour s'apercevoir qu'on aime vraiment beaucoup la vie."
A existência e a família fabricam-se, entre a realidade e aquilo que sonhamos (desejos roubados, frustados, cumpridos). Une joie et une souffrance. E na sala de cinema, somos passageiros desse comboio "qui fonce dans la nuit", rumo a um lugar em que amamos e somos amados.