"Quand j’étais au collège, mon professeur nous expliquait la différence
entre le tact et la politesse. Un monsieur en visite pousse par erreur
la porte d’une salle de bains et découvre une dame absolument nue. Il
recule aussitôt, referme la porte et dit : "Oh, pardon, madame !",
ça, c’est la politesse. Le même monsieur, poussant la même porte,
découvrant la même dame absolument nue et lui disant : "Oh, pardon,
monsieur !", ça, c’est le tact."
"Il faut excuser les solitaires; ce qu'ils écrivent ressemble aux lettres d'amour qui se sont trompées d'adresse." J. Rivette
24 de agosto de 2013
23 de agosto de 2013
A delightful evocation of Renoir
"Then she appeared. A door opened behind me; there was a blur of soft material as Marilyn sped swiftly into Miller's arms, not looking at me until she was hugged in his bear-like embrace. Then she slanted a shy, sleepy smile at me. I had never seen this Marilyn before, in any film or photo. This was no hot sex symbol; this was a little girl, with her face pressed into Daddy's chest, shyly curious of a visitor.
Her face was still rosy, flushed from sleep, and her buttercup-gold hair tangled like a Botticelli cherub. Her eyes had the unreal clarity of the porcelain eyes in a doll; large, wondering, wide apart and slightly turned down at the outsides; and the mouth, timorously half-parted lips; the saucy turned-up nose - here indeed was a delightful evocation of Renoir."
(Magic Hour, Jack Cardiff)
21 de agosto de 2013
Ce que nous avions en face II
Ontem foi um dia duro, duríssimo, como se o país onde vivemos nos dissesse que o percurso que fizemos e tentámos alimentar nele não fazia sentido de existir. Já o tinha escrito dias antes - a trágica sequência de acontecimentos que mostrava a total ausência de política, de ideias, ou de mera preocupação perante uma matéria que nos forma (e não apenas um sector - a cultura é isso mesmo, algo de vivo que nos forma e nos torna mais abertos, curiosos, e tolerantes), teria como consequência última o fim de um país: sem imagens, sem pensamento, sem história(s). O facto de se chegar a este ponto - deixar que uma instituição como a Cinemateca nacional, após anos de medidas e regulamentações que conseguiram destruir o seu funcionamento, não consiga simplesmente trabalhar -, mostra que é a ausência total de política cultural que acaba por determinar a nossa falência. Não há volta a dar a este facto: a falência financeira está invariavelmente ligada à falência cultural, e a história recente do nosso país mostra que, sem este trabalho e perante a sua crescente desvalorização, nunca aprenderemos a gerir os nossos recursos. A ausência de política - não apenas na cultura mas também noutros sectores -, abre portas às políticas más; a ausência de pensamento e de fundo na tomada de decisões (afastando quem trabalha nesses sectores e é formado neles), traz inevitavelmente a destruição desses recursos. E nunca conseguiremos crescer enquanto pessoas para cumprir os nossos desejos - artísticos, culturais, económicos.
Perante este sentimento de descalabro e de falhanço pessoal - porque somos nós que compomos o nosso país, não deveríamos ser corpos diferentes e separados -, surge ainda, como essa mesma casa me ensinou através das imagens deste mundo, um resto de esperança, de desejo de criar, de usar a nossa inspiração e os nossos sonhos para afastar a frustração e os bloqueios, pois as vidas continuam a ser nossas. Não por acaso, Frank Capra também anda na minha cabeça - ele mesmo instalou esse vírus que nos salva quando nos encontramos perante um abismo: "Film is a disease. When it infects your bloodstream, it takes over as
the number one hormone; it bosses the enzymes; directs the pineal gland;
plays Iago to your psyche. As with heroin, the antidote to film is more
film". Ou como quem diz, o antídoto para a morte é vida e mais vida. Venha a esperança nessa descrença, pois precisamos de estar à altura dos nossos desejos. E porque as vidas são sempre nossas, é nos tempos de vazio que precisamos de ver ainda melhor o que está e sempre esteve à nossa frente.
15 de agosto de 2013
Ce que nous avions en face
"Les mouvements de caméra sont toujours difficiles pour moi mais, à cette époque, je raisonnais ainsi : quand nous attendons longtemps quelqu'un qui arrive de loin, nous ne cessons de le regarder. Nous attendons qu'il arrive car il n'est pas un passant ordinaire, il est si important pour nous que nous fixons notre regard sur lui et nous ne découpons pas le plan. Les découpages étranges, dont je ne comprends pas le but, n'ont jamais été à mon goût, comme ces découpages à huit ou dix plans qui ne laissent pas voir la scène. Parfois, la réalité même nous dit qu'il ne faut pas découper le film, et que pour s'approcher des gens, il ne faut pas nécessairement rapprocher la caméra. Il faut attendre, se donner du temps pour bien voir les choses et les découvrir. Parfois, le gros plan ne signifie pas être tout près; au contraire, il engendre l'éloignement. Je voyais que toutes les règles que nous avions apprises dans les livres ne marchaient pas en pratique avec ce que nous avions en face."
Abbas Kiarostami (Abbas Kiarostami, Alain Bergala, ed. Cahiers du Cinéma)
14 de agosto de 2013
O cinema português sem movimento
Depois de surgirem, mais uma vez, novos números que indicam que os espectadores nas salas de cinema, em Portugal, se reduzem de forma alarmante, que as operadoras de televisão se recusam a cumprir a negociada e implementada lei do cinema, depois de meses do fecho e reabertura do segundo maior exibidor de cinema no nosso território, talvez pouco precisássemos ainda para perceber que o sector do cinema, em Portugal, vive profundamente dividido, disfuncional, e inoperante. Cinema e televisão continuam a viver de costas voltadas (já nem perguntamos que cinema português passa na televisão de sinal aberto, perguntamos - que cinema?, simplesmente), o público continua perdido no mapa esquizofrénico de distribuição (dirigindo-se a salas sem qualquer espécie de identidade ou de programação, uma capacidade que já foi retirada pelo próprio Estado à sua sala de cinema - a Cinemateca Portuguesa -, sim, uma sala que é sua e que assim o é para cumprir uma função), e, sobretudo, completamente alheado de uma ideia simples, básica, humana, enterrado num preconceito que ainda existe contra quem faz cinema, por que o faz, e que filmes devem ser feitos.
A culpa, no entanto, não é do público português: já são longos anos em que, da ideia de desenvolvimento para Portugal, sempre se alheou a da formação do nosso olhar para entendermos o mundo, gerirmos a nossa vida, vivermos na nossa comunidade, ou, simplesmente, enriquecer e abrir as nossas mentes, porque esse é dos sinais mais reconhecidos de uma sociedade rica, recusando a sobranceria de quem quer fazer da cultura algo de inacessível, especial, ou reservado aos seus, ou de quem a rejeita por ver aí uma ameaça da terrível minoria do intelecto. Toda esta contradição teve um ponto explicitamente alto quando um ex-Secretário de Estado da Cultura chegou a defender, na mesma intervenção, que uma das prioridades do seu mandato era a aposta na formação (mandato que durou pouco mais de um ano), mas que não acreditava na expressão "políticas culturais". Nos vários campos políticos portugueses, os complexos em relação à cultura são de tal ordem que se chega a este ponto: a recusa de que a política cultural é algo de natural e não ideológico, ao ponto de querer "banir" as suas próprias palavras da linguagem.
Neste momento, acontece um mesmo evento de "formação" no nosso país: a mostra de vários filmes portugueses em dezenas de localidades, pelo nosso território, que nunca assistiram à projecção de um filme português nos últimos nove anos. Se bem que esta possa ser vista como um acção louvável - levar cinema a quem não o tem -, não será, precisamente, por acções destas - isoladas no tempo, respondendo ao vazio com um evento efémero e não com uma presença regular e constante junto da sua população -, que o público português irá acordar para o cinema do seu país. Mas um olhar para a sua programação revela um dado ainda mais alarmante: a esmagadora maioria dos filmes projectados correspondem à chamada facção (triste estado do cinema, aquele que está dividido por facções) do "cinema comercial", ou seja, do cinema que é feito para o "grande público" (sim, aquele que já não vai às salas e deixa o segundo maior exibidor cair na falência).
A crítica, aqui, não se prende pela suposta qualidade (ou não) dos filmes - se bem que, se estivéssemos a falar de formação do olhar, de um trabalho feito sobre as pessoas para estas desenvolverem a sua forma de olhar para o mundo (sim, é possível fazer isto no seu mais puro respeito e vontade, sem arrogância e prepotência), teria necessariamente de existir uma ideia mínima de programação por quem trabalha sobre isso (sim, é um trabalho, e sim, dirige-se a todos - todos). A crítica está em, precisamente, essa política do gosto vir de parte do próprio Estado, ao incluir filmes que alguns desses espectadores, mesmo nos cantos mais escondidos do nosso país, já terão visto passar nas raras vezes que a nossa televisão mostra filmes portugueses, recusando a diversidade da sua mostra, ou mesmo algumas das obras que maior correspondência terão recebido a nível internacional - aquelas que são referidas, fora dessas aldeias e mesmo de Portugal, quando se fala de cinema português.
Pegamos noutro evento, também a acontecer neste momento - e que também deseja dar a conhecer o cinema português a quem nunca o viu -, para percebermos, de forma ainda mais clara, a diferença de visões que existe entre como o cinema português é visto dentro do nosso território pelas entidades que o gerem, e fora do nosso território por quem procura vê-lo (em festivais, em mostras, no circuito comercial). Na Primeira Semana do Cinema Português, em Buenos Aires, a sua programação é radicalmente oposta, ao ponto de acharmos que se tratam de dois países diferentes. Aqui, a crítica é justa: tratam-se de filmes que abrem o nosso olhar para outros mundos, filmes recompensados e reconhecidos, tanto pelo público como pela crítica no mundo inteiro, como olhares originais sobre o mundo feitos a partir do nosso país (e quando se diz originais, não se diz exclusivos e fechados, pelo contrário). Na Primeira Semana do Cinema Português, os espectadores argentinos terão a oportunidade de ver como Portugal olha para o mundo - e por aí, incluirem-se nessa visão para enriquecer os seus sentidos e desafiarem aquilo que conheciam, através de uma formação do olhar que não se deseja identitária, mas humana (por cingir sobre os sentidos).
Em Portugal, enquanto se continuar a recusar a ideia de que o Estado tem de intervir na formação do olhar - e ao fazer isso, aplicar a sua política no respeito mais alargado, tolerante, e menos ideológico possível sobre o tecido artístico e industrial português (e ao se dizer o Estado, que a sua acção passa por chamar quem trabalha nessas áreas e dedica o seu próprio olhar a essa formação e investigação), as várias facções continuarão a ser facções, as leis continuarão a ser incumpridas e rasgadas, o divórcio entre agentes fará a regra, e o público português continuará a passar ao lado do seu desenvolvimento.
9 de agosto de 2013
De l'espoir dans sa crainte et de la crainte dans son espoir
Talvez um rapaz de trinta anos não devesse pensar tanto nisto, mas acabamos por viver também o que a vida nos dá na sua passagem, relembrando-nos que, por cada desaparecimento e cada adeus que nos vemos obrigados a fazer, surge a obrigação de continuar os nossos passos e o nosso dever de criação. A vida é efémera e passageira, mas imensa e maravilhosa. É a maior das contradições e é tudo isso que nos move, não há solução para ela pois ela não nos pede nenhuma. Talvez seja essa a pequena aprendizagem da maturidade.
Por isso, não será estranho num dia em que se celebra a vida, como no seu aniversário, que se pense também na morte. Dos momentos mais tocantes que vivi numa sala de cinema foram no mergulho em filmes e histórias de Frank Capra - nunca tanto como nessas obras se celebraram de forma tão comovente o que a vida nos oferece e, sobretudo, o que ela ainda tem para oferecer, pois a sua comoção surgia, precisamente, perante esse perigo, essa ameaça, e, depois, com a interiorização do fim de todas as coisas. Por se estar sempre no limiar dessa escuridão, ou do desespero que fazemos quando a sentimos chegar, é que surge o seu exacto oposto: uma euforia de viver, um desejo tremendo e absoluto de amar quem está à nossa volta e que vemos como provas de vida, de amor, de amizade. E assim, de dar os grandes passos que a vida nos pede para fazer - os da coragem e da curiosidade. Crescer como o Mr. Smith até à altura do Capitólio e do seu sonho de sociedade até ficar sem voz, subir até ao céu por momentos e regressar, pela via dos anjos, como aconteceu a George Bailey, para perceber que o paraíso estava, afinal, na terra, junto dos seus. Ou perceber que os promenores materiais aos quais damos tanto de nós, na verdade, de pouco valem, porque quando chega esse momento eterno, alguém dir-nos-á: you can't take it with you.
Ao passar na alfarrabista de Campo de Ourique, hoje de manhã, uma biografia colocada cá fora convidou-me a abri-la e a descobrir as palavras, dentro dessa vida, que se adequavam exactamente ao que sentia, em toda a minha walking contradiction (Tolstoï, Henri Troyat):
"A quelque temps de là, il apprit que son vieil ami, le publiciste Vassili Pétrovitch Botkine, était mort chez lui, le 4 octobre, au cours d'une soirée musicale à laquelle il avait convié beaucoup de monde. N'était-ce pas étrange, ces préparatifs, ces invitations lancées aux quatre coins de la ville, cet orchestre, ces chaises dorées, ces corbeilles de fleurs, ces soucis de buffet, de vins, de toilettes, de préséances et, tout à coup - la culbute? Et lui, comment mourrait-il? En feuilletant son carnet de notes, il retrouva ces lignes qu'il y avait écrites quatre ans auparavant: 'J'attendais des gens que j'aimais... Ils arrivèrent exactement tels que je souhaitais les voir. J'étais heureux. Le soir, je me couchai. Je me trouvais dans cet état de demi-somnolence où l'agitation futile s'apaise et où l'âme se met à parler clairement... Mon âme aspirait à quelque chose, voulait quelque chose. Que puis-je vouloir? me demandai-je avec étonnement. Mes amis sont arrivés. N'est-ce donc pas de cela que j'avais besoin pour recouvrer mon calme? Non, ce n'est pas de cela... De quoi donc alors? Je passai tout en revue... Rien ne put satisfaire en moi ce désir. Et ce désir persistait, persiste encore et constitue même ce qu'il y a de plus important et de plus fort dans mon âme. Je désire ce qui n'existe pas ici, dans ce monde. Mais cela existe quelque part puisque je le désire. Où?... Se régénérer, mourir. Voilà le calme que j'espère et que nous espérons...' Hier, il espérait la mort, aujourd'hui il la craignait. Mais n'est-ce pas le propre de l'homme de mettre toujours, quoi qu'il advienne, de l'espoir dans sa crainte et de la crainte dans son espoir? Désormais, il allait vivre comme un blessé dont on n'a pu extraire la balle. Elle est là, dans la tête. Impossible de l'oublier. Pourtant on la sent à peine. L'hiver vint, la neige entoura la maison, la famille se resserra autour des pôeles allumés, et Léon Tolstoï, peu à peu, reprit confiance en son avenir sur la terre."
7 de agosto de 2013
"Dans le numéro 100 des Cahiers du Cinéma, en octobre 1959, dont le dessin de couverture était signé Jean Cocteau ("le 100 d'un poête"), Claude Chabrol avait déjà pris sa plume facétieuse pour défendre les petits sujets contre les 'crétins' - le mot est de lui - qui étaient déjà nombreux à croire aux grands sujets: 'A mon avis, concluait-il, il n'y a pas de grands ou de petits sujets, parce que plus le sujet est petit, plus on peut le traiter avec grandeur. En vérité, il n'y a que la vérité'."
(Alain Bergala, L'hypothèse cinéma, ed. Cahiers du Cinéma)
"Le véritable cineaste est 'travaillé' par une question, que son film à son tour travaille. C'est quelqu'un pour qui filmer n'est pas chercher la traduction en images des idées dont il est déjà sûr, mais quelqu'un qui cherche et pense dans l'acte même de faire le film. Les cinéastes qui ont déjà la réponse - et pour qui le film n'a pas à produire mais simplement à transmettre un message déjà acquis - instrumentalisent le cinéma."
Alain Bergala (L'hypothèse cinéma, ed. Cahiers du Cinéma)
You were always right
Encontrei este poema de Éluard na última viagem a Paris (os regressos a Paris são sempre o regresso a uma casa perdida, mas à qual podemos voltar, por momentos, quando mais precisamos dela), no topo de uma enorme prateleira de uma livraria em Abbesses - uma livraria em que as paredes são livros e outros recantos se cobrem com postais e cartazes para a nossa imaginação. A esse topo subia-se por um escadote de poucos metros de altura, obrigando-nos a pautar cada gesto nosso pela calma e pela atenção, como se, nesse topo, o tempo já fosse diferente, apenas o das palavras. Ou como me recordo numa outra livraria, do outro lado do mundo, que anunciava aos seus visitantes antes de entrarem nas suas salas: abandon all despair ye who enter here. A poesia lá se encontrava, e aí, sem outros clientes ao nosso lado, nesse lugar mais perto do céu, lemos sozinhos palavras que só podem ser nossas. E ao descer de novo desse escadote, trazemos essas palavras connosco até à terra, sabendo que não as basta ler, terá de se fazer qualquer coisa delas. No fim da mesma rua, chega-se ao cemitério de Montmartre, onde os mortos vivem por aquilo que nos deixaram, e sobre a campa de Truffaut, alguém vivo e que respira, entre nós, as nossas sensações e as nossas dúvidas, escreveu a maior das certezas: "you were always right".
Toutes les femmes heureuses ont
Retrouvé leur mari - il revient du soleil
Tant il apporte de chaleur.
Il rit et dit bonjour tout doucement
Avant d'embrasser sa merveille.
*
Splendide, la poitrine cambrée légèrement
Sainte ma femme, tu es à moi bien mieux qu'au temps
Ou avec lui, et lui, et lui, et lui,
Je tenais un fusil, un bidon - notre vie !
*
J'ai eu longtemps un visage inutile,
Mais maintenant
J'ai un visage pour être aimé
J'ai un visage pour être heureux
*
Je rêve de toutes les belles
Qui se promènent dans la nuit,
Très calmes.
Avec la lune qui voyage.
*
Toute la fleur des fruits éclaire mon jardin,
Les arbres de beauté et les arbres fruitiers
Et je travaille et je suis seul en mon jardin,
Et le Soleil brûle en feu sombre sur mes mains.
Paul Éluard
6 de agosto de 2013
Le journal d'Alphonse
Acontece demasiadas vezes, mas dada a importância que a imaginação prende na minha cabeça, já aprendi a aceitar os enganos e esquecimentos que faço com alguns compromissos da vida real.
Saía de casa, portanto, com horários feitos para o visionamento de um filme pela manhã (a hora em que os espectadores ainda dormem e os críticos devem trabalhar), quando me deparo com a sala de cinema fechada e de grades postas. No tempo de espera e de esperança que faço para ver se haverá, ou não, a dita projecção do filme, olho para os transeuntes que aí passam e noto não tanto na curiosidade com que interrompem os seus passos para ler anúncios e papéis de outros filmes e ciclos, mas antes na surpresa de verem uma sala de cinema a viver no meio de uma rua - sim, no meio da vida de todos os que ali vivem e que ali passam. E se se fala todos os dias da crise económica e financeira, aquela que mais salta à vista é aquela que é sempre esquecida: a crise da imaginação, ausente destas mesmas ruas que vivem hoje sem cinema. "A imaginação ao poder": se, no meu caso, ela revela-se por vezes totalitária, não deixa de ser a sua ausência que nos traz a maior das pobrezas: a do espírito, que precisa das suas projecções para viver. De filmes, de paixões, dos sentimentos, da curiosidade em descobrir aquilo que ainda está escondido dentro de nós. Os cinemas não são cavernas, são portas abertas para esse espírito, espelhos brilhantes que nos refletem aquilo para o qual nunca conseguiremos dar palavras na vida.
Aceito então, de novo, esse mesmo "poder" e deixo-me divagar nos noventa minutos vagos que encontrei na minha nova manhã, percorrendo um caminho, nessas ruas, tal como um espectador que aceita as imagens de um filme em que já se encontra mergulhado. E sigo o instinto que me leva também tantas vezes (e não existem demasiadas) para a livraria francesa, em busca de uma história que ainda não abri e que talvez direccione melhor os meus passos perdidos. Talvez pela solidão, pego num livro que já aí se encontrava há muitos anos na mesma prateleira: Le journal d'Alphonse - Alphonse, filho de Antoine (Doinel). O que antes me fizera afastar dele é, hoje, aquilo que me faz abri-lo: retiro-o desse esquecimento e leio as suas primeiras páginas, sem perceber se esse "journal", ou diário, é algo de verdadeiro ou falso. E aí descubro um projecto secreto nunca revelado em qualquer outro livro que lera de Truffaut: já doente, este filmara alguns ensaios daquele que seria o quinto tomo da saga Doinel - desta vez, pelo filho Alphonse, e não por Antoine. Élisabeth Butterfly (um nome que poderia ser retirado do tom mais brincalhão do cinema de Truffaut) descobrira esse projecto em pesquisas feitas na biblioteca da Cinemateca Francesa, publicando o que ficou desse guião interrompido, as suas notas, as suas intenções. E pelo meio, a pertinente observação e pontes com todo o cinema de Truffaut, as notas que o realizador retirara do Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes, e um olhar crítico resumido mas certeiro sobre o movimento do seu cinema. "Le domaine privilégié de Truffaut n'est ni la sociologie ni la réflexion sur l'écriture, mais le monde des sentiments". Um mundo em que os sentimentos, de facto, tomam o poder, e fazem com que o jovem Alphonse viva o seu primeiro amor com o maior dos dramatismos - aquele amor que toma conta de todos os solitários e que a ele se abandonam, nas suas horas da inocência, para abrir feridas e viverem a vida como se nela vivessem os seus últimos momentos.
Diz Alphonse: "J'ai porté à Marion 61 lys blancs destinés à un mariage en banlieue. J'ai été viré, Marion est tombée malade parce qu'elle est allergique aux fleurs, alors, j'ai voulu mourir. 'Certains jours comme aujourd'hui, la vie a si mauvais goût qu'on voudrait pouvoir la cracher'." Alphonse cita André Gide para poder viver a paixão pela paixão, sem a vida. Por outras palavras, a sua destruição - a morte - ainda em terna idade. "À l'âge où l'on attrape des rougeoles et des scarlatines, moi j'avais choisi le mal de vivre. Alors, comme on crève en douce le chat du voisin, je m'étais ouvert les veines, sans drame, pour en finir."
Mas Truffaut, sabendo que o cinema e a vida também fazem mal, cita antes: "On est le père et la mère de ses oeuvres", como um adulto que sabe que os sentimentos são também nossos filhos, logo, movimentos livres aos quais tentamos dar a melhor direcção possível. E por aí, o realizador põe a mãe Christine a falar com Alphonse, num daqueles momentos do seu cinema em que as personagens falam tanto para as pessoas que amam como para quem os vê na sala: "Tu sais, Alphonse, contrairement à ce que prétend ton père, la vie n'est pas un roman. Chaque personne est un couple qui ne cesse de se disputer. On casse des vases, on brise de la vaisselle, on se dit des insanités, on s'exècre, on se méprise, mais on finit toujours par faire la paix. Alors, tu comprends, se couper les veines, ce n'est pas la règle du jeu. C'est une chance que Luca t'aie trouvé. La vie est dure, Alphonse, mais elle est belle, puisqu'on y tient tellement." Raccord para L'argent de poche (1976): "La vie est dure, mais elle est belle, puisqu'on y tient tellement. Il suffit qu'on soit obligé de rester au lit pour s'apercevoir qu'on aime vraiment beaucoup la vie."
A existência e a família fabricam-se, entre a realidade e aquilo que sonhamos (desejos roubados, frustados, cumpridos). Une joie et une souffrance. E na sala de cinema, somos passageiros desse comboio "qui fonce dans la nuit", rumo a um lugar em que amamos e somos amados.
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