Alain Resnais, entre os vivos, pertence já aos deuses - pergunto-me mesmo se não será como os deuses antigos cujas histórias lemos e que, tomando a forma humana, pegam na realidade para fazer dela um jogo de percepção seu, onde sentimentos respondem a sentimentos, actos respondem a palavras, palavras respondem a olhares. Nada surpreende mas tudo espanta, nada se desfaz mas tudo renasce. Esse jogo com a realidade, tal como esses deuses, Resnais fá-lo porque nada é sem os seus - os rostos humanos que vivem nos actores e as pessoas que se dão à sua encenação. Essa encenação, é sobre nós e para nós, devolvendo-nos a vida com cada poro que se respira - mas sem vangloriá-la -, celebrando o seu movimento, a sua encenação, os seus efeitos, trazendo a verdade para aquilo que vem do artifício. Resnais foi para o cinema e tornou-se cinema, e tal como esses deuses, tudo aquilo em que toca move-se para além do que se explica e se espera.
De forma bem mais simples, a minha maneira de celebrá-lo é dizendo: há duas horas atrás, a minha vida pouco me parecia interessante (dentro da ficção que decidi criar para mim, esta noite, antes de me entregar aos sonhos), mas depois de Vous n'avez encore rien vu, sinto que tudo vi na vida e tudo terei ainda para ver em tudo o que vier pela frente.
Não há lições no cinema de Resnais, há uma vontade de viver e aceitar tudo o que a vida tem de bom, de mau, de bonito, até de feio, e sobretudo, vendo o verdadeiro no falso, e o pequeno jogo falso que fazemos para nós a partir do que sentimos ser verdadeiro. Amour, amour, je t'aime tant, cantava-se numa outra música, num outro filme. Pego nessas palavras e canto-as para mim embalado pelo movimento de Resnais, também me dizendo que me ama porque sem o meu olhar, nada dele, nada de mim existe.